Atuação: Professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais
Anos Iniciais do Ensino Fundamental
Salto
– Hoje nós temos o Ensino Fundamental ampliado: a criança com seis anos já
entra no primeiro ano desta etapa da escolaridade. Como podemos pensar
situações de aprendizagem que coloquem essa criança em processo de
alfabetização e letramento?
Magda Soares – Essa criança, na verdade, já deve ter sido colocada na situação
de alfabetização e letramento na educação infantil, uma vez que não se pode
pensar que a criança está inaugurando seu processo de letramento e de escrita
aos seis anos. Antes até de chegar na educação infantil, ela está convivendo
com leitura, material escrito, mesmo nas camadas populares, pois nós vivemos
numa sociedade grafocêntrica, cercada de livros e escrita por todos os lados.
Então, é uma continuidade. A primeira coisa é que, aos seis anos, não é um
momento de inauguração, é um momento de continuidade. É preciso ver em que
nível a criança está de apropriação, tanto do sistema de escrita, quanto do
processo de letramento para, a partir disso, criar situações em que esse
processo tenha continuidade.
Salto – Como podemos conceituar letramento?
Magda
Soares – Aqui, nesta exposição, nós estamos rodeados de atividades de
letramento. São crianças que estão em fase de alfabetização, temos aqui
trabalhos de crianças desde a creche até o segundo, terceiro ano, no novo
modelo, considerando este o terceiro ano das crianças que entraram aos seis
anos. São crianças em processo de alfabetização, de apropriação do sistema
alfabético e ortográfico de escrita, mas elas estão se apropriando disso no contexto
de letramento, lendo livros de literatura infantil, e a partir daí a professora
trabalha alfabetização. Elas estão escrevendo em situações reais criadas pela
professora, não é uma situação falsa. A literatura dá um apoio muito forte a
esse letramento. Por que, o que é o letramento? São as práticas de leitura e de
escrita. Uma coisa é aprender sistema de escrita, para poder ler e escrever.
Mas isso não resolve o problema da entrada no mundo da escrita. É preciso saber
fazer uso disso, saber escrever uma carta, saber escrever uma história,
saber escrever uma fábula, um convite, etc. Mas fazer isso numa situação
contextualizada, saber para quem eu estou escrevendo, porque estou escrevendo,
tendo motivação para escrever. O papel da professora, da escola, é criar
essas situações que permitam esse desenvolvimento da alfabetização e do
letramento articulados e, ao mesmo tempo, indissociáveis. Eu acho que essa é a
síntese que nós conseguimos fazer agora. Nós tivemos um período em que
ensinávamos o "beabá", para depois a criança praticar isso. Depois
passamos por um período, que foi a época do construtivismo, em que esse
"beabá" foi desprezado, de certa forma, foi marginalizado como um
subproduto do letramento, ou seja, do convívio da criança com o material escrito.
Acho que agora nós chegamos ao momento da síntese, que não é isto ou aquilo,
são as duas coisas ao mesmo tempo, articuladas, embora cada uma com a sua
especificidade quanto à metodologia de trabalho.
Salto
– No primeiro ano do Ensino Fundamental, de que oportunidades de
aprendizagem o professor pode lançar mão para poder trabalhar com essas
questões já aos seis anos?
Magda Soares – Eu não diria que "já aos seis anos", porque este
processo já começou antes. Mas, aos seis anos, o professor vai, talvez, colocar
um foco maior na aprendizagem do sistema de escrita, mas sempre no contexto do
letramento, criando situações de leitura de histórias para crianças. Se eu der
um livro de histórias para a criança, sabendo ler este livro, dando todo
contexto de letramento em que ele foi escrito, as próprias características do
livro – quem escreveu, quem ilustrou esse livro – tudo isso interessa muito à
criança, que está na fase da fantasia. Lemos a história para a criança e,
depois, trabalhamos algumas frases, algumas palavras. Ao invés de você
buscar "A Eva viu a uva", vamos buscar uma frase que está no livro,
contextualizada para a criança, aquela palavra central. Vamos pegar o
LOBO da história da Chapeuzinho Vermelho, e trabalhar o LOBO: escrever
LOBO no quadro, trabalhar fonologicamente a palavra lobo, e dividir as sílabas
– "o LO, se eu trocar o O por A vai ser o quê?" "Vai ser
LA". É uma atividade lúdica, em que as crianças se divertem muito. Nós
temos provas disso aqui neste município (Lagoa Santa), como as crianças gostam
dessa articulação: de pegar o LOBO da história e transformá-lo em uma palavra a
ser analisada.
Salto
– Nós tivemos a oportunidade de gravar aqui, em Lagoa Santa, uma atividade em
que a professora começava a contar a história, que era uma fábula de Monteiro
Lobato, apresentando a capa do livro, a contracapa, abordando quem seria o
autor, falando da editora. Qual a importância da apresentação destes elementos
do livro para as crianças?
Magda Soares – Uma das facetas importantes do processo de letramento, sobretudo
no plano atual, é conseguirmos contaminar as crianças com o prazer de ler o
livro, com o gosto da leitura, com a paixão da leitura, que a gente tem perdido
muito. E há razões para isso, que não interessa dizer aqui. Nós temos trabalhado
muito o livro como um objeto cultural, e não só o livro como portador de
texto, mas o livro como objeto cultural. A gente faz as crianças cheirarem o
livro, pegarem o livro, ver que o livro é um objeto que tem suas partes, como
nós temos o rosto, as costas, as pernas, os braços. O livro tem a lombada, a
capa, a quarta capa, e as crianças gostam muito disso. A ponto de vermos,
frequentemente, crianças chegarem à biblioteca da escola e pedirem assim:
"Essa semana eu quero levar para casa um livro, mas eu quero um livro que
tenha lombada". E eu perguntei a uma criança: "Por que você quer um
livro que tenha lombada?"; "Porque ele fica em pé." Esses livros
infantis são muito fininhos, tanto que, na nossa biblioteca, eles ficam expostos;
mas o livro mais grosso, de capa dura, ele fica em pé. E a criança queria um
livro que tivesse lombada, e vemos como é importante isso: a criança tem uma
relação com o livro, que é uma relação com o objeto cultural.
Salto
– Fale sobre a riqueza que esse trabalho nos apresenta, e da especificidade
lúdica que um trabalho como esse de alfabetização e letramento vai exigir, vai
requerer.
Magda Soares – Eu acho que o que fica mais forte nesta exposição é observar um
aspecto importante: costuma-se criticar e temer que, nessa entrada da criança
aos seis anos no ensino fundamental, ela seria impedida de brincar, etc. Isso é
uma falta de visão de como a alfabetização e o letramento podem ser atividades
lúdicas, que envolvem muito a criança, tanto no aprender o sistema de escrita
quanto, sobretudo, na aprendizagem da leitura. Como estamos vendo aqui, por
exemplo: a criança trabalhando com trava-línguas. São crianças de seis anos,
estão no 1º ano. Trava-línguas, o que é? É uma brincadeira, uma brincadeira com
a escrita: "Papagaio come milho, Periquito leva a fama. Cantaram uns,
choraram outros. Triste sina de quem ama". Isso está desenvolvendo a
consciência fonológica, que é fundamental para a alfabetização e, ao mesmo
tempo, a criança está escrevendo, está desenhando, está montando o caderninho
dela de trava-línguas, com editora, com conceito de editora, conceito de capa,
tudo isso ao mesmo tempo.
Sobre a história em
quadrinhos e o relatório: Nós colocamos muita ênfase no trabalho com gêneros
diversos, que é algo fundamental para o letramento. Tempos atrás, só se
trabalhava com a criança a história. A criança gosta de historinha, então
devemos trabalhar só com histórias? Não. É preciso trabalhar com todos os
gêneros. Por exemplo: aqui são crianças de Infantil 2, crianças de 5 anos, já
trabalhando com história em quadrinhos e relatório. Elas já conseguem escrever
o nome dos autores, o nome da escola, a história que leram, eles fazem a
ilustração da história. Trabalham com as características da história em
quadrinhos: as figuras, o uso do balão, eles ditam para a professora as falas,
e as que já sabem escrever, escrevem diretamente. Estão criando o conceito de
escrita de história em quadrinhos, o uso dos balões da história em quadrinhos.
Sobre a história
da Dona Baratinha: Foi contada a história, mostrou-se o livro, o ilustrador, o
autor, etc. Depois, as crianças fizeram um livro e, quando elas fazem, sabem
que tem a folha de rosto, e elas usam essa terminologia: "Ana Maria
Machado contou e o terceiro ano recontou!". É um reconto da história da
baratinha. Todos escrevem seus nomes e reescrevem a história. O interessante é
que, quando dizem que ela vai casar, criam um livro de noivas, com vestidos,
uma revista de noivas, para Dona Baratinha escolher o vestido dela. A criança vai
descobrindo o uso da escrita para várias finalidades. Tem o convite de
casamento. E a professora traz um convite de casamento para as crianças, mostra
o convite e diz a finalidade daquele convite, e para onde vão os convites. E
muitas das nossas crianças são de camadas populares e não vivenciam o uso de
tudo isto. Tem a receita do bolo, elas discutiram como se constrói uma receita,
viram livros. Construíram um mapa da festa e, assim, articulam este
conhecimento com outras áreas. Trabalha-se o bilhete contextualizado com a
história. É lúdico, as crianças se divertem para criar isto. Pensam no texto
para a internet, a venda do livro da Dona Baratinha, o pagamento que pode ser
feito por vários cartões. E, dessa forma, trabalham os vários gêneros a partir
da história que está aqui. Elas estão aprendendo a ler e a escrever os
diferentes gêneros de leitura e escrita que circulam na sociedade. Não só a
ler, mas a reconhecer e a escrever também.
Salto
– E qual a importância desse processo de alfabetização para o processo inteiro
de uma educação ao longo da vida?
Magda
Soares – Sem esse processo inicial, a educação não vai para frente. Eu tenho
uma história interessante na minha vida profissional, porque eu comecei
trabalhando com ensino médio, e aí eu passei para a segunda etapa do ensino
fundamental, e pensei: ainda não é aí que eu tenho que trabalhar. Passei a
trabalhar com pesquisa, a realizar estudos na prática com as séries iniciais, e
de um tempo para cá percebi que tinha que ir para a educação infantil e
para a creche, pois é aí que está a base. Se nós não formamos e não
construirmos o alicerce aí, não há futuro para essas crianças. Porque sem
dominar a leitura e a escrita e as práticas sociais de leitura e de escrita,
eles não têm um futuro garantido na vida de aprendizagem, para aprender
Geografia, História, até chegar ao ensino superior. Sem essa base não é
possível. E na vida pessoal, profissional também, porque, em nosso mundo, se a
pessoa não está inserida no mundo da escrita dificilmente vence, ou até mesmo
não vence.
Realizada em 21.09.2009
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