A psicolinguista argentina desvendou os mecanismos pelos quais as crianças aprendem a ler e escrever, o que levou os educadores a rever radicalmente seus métodos.
Nenhum nome teve mais influência sobre a
educação brasileira nos últimos 30 anos do que o da psicolinguista argentina
Emilia Ferreiro. A divulgação de seus livros no Brasil, a partir de meados dos
anos 1980, causou um grande impacto sobre a concepção que se tinha do processo
de alfabetização, influenciando as próprias normas do governo para a área,
expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais. As obras de Emilia -
Psicogênese da Língua Escrita é a mais importante - não apresentam nenhum
método pedagógico, mas revelam os processos de aprendizado das crianças,
levando a conclusões que puseram em questão os métodos tradicionais de ensino
da leitura e da escrita. "A história da alfabetização pode ser dividida em
antes e depois de Emilia Ferreiro", diz a educadora Telma Weisz, que foi
aluna da psicolinguista.
Emilia Ferreiro se tornou uma espécie de
referência para o ensino brasileiro e seu nome passou a ser ligado ao
construtivismo, campo de estudo inaugurado pelas descobertas a que chegou o
biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) na investigação dos processos de
aquisição e elaboração de conhecimento pela criança - ou seja, de que modo ela
aprende. As pesquisas de Emilia Ferreiro, que estudou e trabalhou com Piaget,
concentram o foco nos mecanismos cognitivos relacionados à leitura e à escrita.
De maneira equivocada, muitos consideram o construtivismo um método.
Tanto as descobertas de Piaget como as de
Emilia levam à conclusão de que as crianças têm um papel ativo no aprendizado.
Elas constroem o próprio conhecimento - daí a palavra construtivismo. A
principal implicação dessa conclusão para a prática escolar é transferir o foco
da escola - e da alfabetização em particular - do conteúdo ensinado para o
sujeito que aprende, ou seja, o aluno. "Até então, os educadores só se
preocupavam com a aprendizagem quando a criança parecia não aprender", diz
Telma Weisz. "Emilia Ferreiro inverteu essa ótica com resultados
surpreendentes."
O princípio de que o processo de conhecimento
por parte da criança deve ser gradual corresponde aos mecanismos deduzidos por
Piaget, segundo os quais cada salto cognitivo depende de uma assimilação e de
uma reacomodação dos esquemas internos, que necessariamente levam tempo. É por
utilizar esses esquemas internos, e não simplesmente repetir o que ouvem, que
as crianças interpretam o ensino recebido. No caso da alfabetização isso
implica uma transformação da escrita convencional dos adultos. Para o
construtivismo, nada mais revelador do funcionamento da mente de um aluno do
que seus supostos erros, porque evidenciam como ele "releu" o
conteúdo aprendido. O que as crianças aprendem não coincide com aquilo que lhes
foi ensinado.
Compreensão do
conteúdo
Com base nesses pressupostos, Emilia Ferreiro
critica a alfabetização tradicional, porque julga a prontidão das crianças para
o aprendizado da leitura e da escrita por meio de avaliações de percepção
(capacidade de discriminar sons e sinais, por exemplo) e de motricidade
(coordenação, orientação espacial etc.). Dessa forma, dá-se peso excessivo para
um aspecto exterior da escrita (saber desenhar as letras) e deixa-se de lado
suas características conceituais, ou seja, a compreensão da natureza da escrita
e sua organização. Para os construtivistas, o aprendizado da alfabetização não
ocorre desligado do conteúdo da escrita.
É por não levar em conta o ponto mais
importante da alfabetização que os métodos tradicionais insistem em introduzir
os alunos à leitura com palavras aparentemente simples e sonoras (como babá,
bebê, papa), mas que, do ponto de vista da assimilação das crianças,
simplesmente não se ligam a nada. Segundo o mesmo raciocínio equivocado, o
contato da criança com a organização da escrita é adiado para quando ela já for
capaz de ler as palavras isoladas, embora as relações que ela estabelece com os
textos inteiros sejam enriquecedoras desde o início.
Segundo
Emilia Ferreiro, a alfabetização também é uma forma de se apropriar das funções
sociais da escrita. De acordo com suas conclusões, desempenhos díspares
apresentados por crianças de classes sociais diferentes na alfabetização não
revelam capacidades desiguais, mas o acesso maior ou menor a textos lidos e
escritos desde os primeiros anos de vida.
Sala de aula vira
ambiente alfabetizador
Uma das principais consequências da absorção
da obra de Emilia Ferreiro na alfabetização é a recusa ao uso das cartilhas,
uma espécie de bandeira que a psicolinguista argentina ergue. Segundo ela, a
compreensão da função social da escrita deve ser estimulada com o uso de textos
de atualidade, livros, histórias, jornais, revistas. Para a psicolinguista, as
cartilhas, ao contrário, oferecem um universo artificial e desinteressante. Em
compensação, numa proposta construtivista de ensino, a sala de aula se
transforma totalmente, criando-se o que se chama de ambiente alfabetizador.
Autor:
Márcio
Ferrari
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